CLÁUDIA ROMARIZ
A pandemia do coronavírus trouxe para a superfície mazelas sociais que antes passavam despercebidas pela maioria das pessoas. A falta de saneamento básico fez dos mais pobres mais suscetíveis à doença causada pelo vírus. As medidas de isolamento social necessárias para controle da pandemia e a crise econômica decorrente delas fizeram com que muitos brasileiros perdessem sua fonte de renda.
Esse despertar levou os consumidores a ficarem mais atentos à postura das empresas e a exigirem das organizações um posicionamento sobre questões sociais. Embora algumas dessas questões ainda causem polêmica em pleno século XXI, o fato é que empresas “ensimesmadas”, que desempenham suas atividades apenas em prol de sua sobrevivência, não são mais vistas como antes.
O que precisa hoje estar no cerne das empresas pode ser resumido em uma única palavra: propósito, um valor que extrapola os limites da organização e gera impacto positivo na sociedade.
“Há muitos anos muitos consumidores no Brasil se identificam com marcas que abraçam causas, olham para os produtos de empresas que os produzem observando e perguntando quais são os impactos que geram no meio ambiente e na sociedade”,
— Rodolfo Gutilla, sócio-diretor da Cause
Segundo ele, foi a partir dos anos 2000 que as novas gerações começaram a perceber que a ideia de progresso e de desenvolvimento trazia consigo uma consequência nefasta, que era a degradação ambiental. “Isso moveu o ponteiro da sociedade, e é óbvio que no Brasil existem outros agravantes como a exclusão social, que gera pobreza extrema e miséria. ”
A pandemia do coronavírus veio agravar ainda mais os problemas sociais que já existiam no País e pressionar as empresas a tomarem providências. “A pandemia veio acelerar a incorporação de propósito na gestão das empresas”, diz Eraldo Carneiro, head em Gestão Estratégica de Reputação e Propósito da In Press Porter Novelli. “Claro que tem empresas que há muito tempo já trabalham orientadas por propósito, mas agora os consumidores estão se tornando mais conscientes, mais preocupados com aspectos relacionados ao propósito, ao valor que as empresas geram, o quanto contribuem ou têm contribuído para aliviar toda essa tensão gerada pela pandemia, seja no nível de saúde, mas também nos outros, como a perda de receita”, ele continua.
Temas urgentes
A desigualdade social, que foi agravada pela crise causada pelo coronavírus, é um exemplo de temas que passaram a demandar mais atenção com a pandemia. “Ficou muito mais evidente que alguns segmentos da sociedade são muito vulneráveis e ficaram mais ainda depois da pandemia”, comenta Carneiro.
Outro exemplo são os pequenos negócios, que se viram fortemente impactados pela crise. A violência contra a mulher, cujas denúncias aumentaram com o isolamento social, também é tema que se tornou mais evidente após o início da pandemia.
O acesso a saneamento básico e a água potável também se tornou um problema gritante. “A pandemia realmente colocou luz sobre algumas causas tais como o saneamento básico e o acesso a água potável, urgentíssimas no Brasil em tempo de pandemia. Isso nos remete a perguntas essenciais, elementares de questões que nunca foram tratadas com a devida importância pela elite brasileira”, comenta Gutilla. “Isso mostra que as causas estão conectadas ao espírito da época.”
O movimento Black Lives Matter, que explodiu após a morte de George Floyd por policiais em Minneapolis, no Estado de MInnesota (EUA), também exigiu um posicionamento mais firme das empresas em relação às questões raciais. No Brasil, a criação de um programa de trainee exclusivo para negros pela varejista Magazine Luiza causou polêmica e levantou discussão sobre a falta de oportunidades para afrodescendentes no mercado de trabalho.
“A pandemia acabou alavancando a agenda não só na área de saúde, mas em todos os segmentos que estão mais fragilizados. Mulheres, negros, pessoas com deficiência, LGBTI. Está cada vez mais difícil as empresas se manterem indiferentes em relação a isso”, diz Carneiro.
Coerência e consistência ao longo do tempo
Ao mesmo tempo que contribui para gerar impacto positivo na sociedade, um propósito autêntico contribui para o crescimento dos negócios, acrescenta o head da In Press Porter Novelli, Eraldo Carneiro. Investidores já olham para critérios classificados como ESG (Environmental, Social and Government – ambiente, social e de governança) para decidir onde vão alocar seus recursos. “O propósito acaba sendo um driver de escolha, de preferência, de lealdade de muitos públicos. ”
Mas é preciso ter coerência e consistência em relação ao seu propósito. Do contrário, corre-se um grande risco de ter a reputação manchada. “As pessoas hoje estão atentas, vigilantes ao comportamento das empresas, não só ao que produzem, mas a quais são seus valores e se são autênticos”, reforça Carneiro.
Zelar pelo propósito pode exigir grandes sacrifícios, como no caso da fabricante alemã de pneus Continental, que emitiu um comunicado pedindo desculpas por ter contribuído com o regime nazista em um momento de sua história. “A empresa assumiu isso publicamente para que possa ser coerente com seu propósito, seus valores atuais, tornando público um erro do passado. ”
Muitas empresas nasceram ou hoje nascem com um propósito. Exemplos atuais são marcas veganas ou que surgem com o objetivo de democratizar o acesso à educação. Outras nasceram de um propósito de seu fundador, que se perdeu com o tempo. Mas, de em todos os casos, de tempos em tempos, é preciso se lembrar o que levou a empresa a ser criada, e o quanto ela ainda gera valor para a sociedade. “Do contrário, ela corre o risco de se ensimesmar, acabar vendo a si mesma, a sua sobrevivência como seu propósito, e perder de vista que propósito é um valor transcendente”, ressalta o head da In Press Porter Novelli.